Está tudo errado. Segundo o consultor brasileiro Ricardo Neves, as idéias mais difundidas sobre pobreza, desenvolvimento e corrupção no Brasil são falsas - e ele se dedica a combatê-las em seu novo livro, Pegando no Tranco. A obra mereceu comparações com o best-seller Freakonomics, dos economistas americanos Steven Levitt e Stephen Dubner, que mostra como as percepções da opinião pública podem ser equivocadas (por exemplo: nos Estados Unidos, as armas matam menos crianças que as piscinas). Neves diz que o Brasil não é pobre, são apenas os números que desaparecem em meio à informalidade da economia. Descarta a idéia do país como campeão da desigualdade social. Desmente a tese de que a classe média está encolhendo. E contesta a visão da criminalidade como fruto da miséria.
ÉPOCA - O Brasil não é pobre? Ricardo Neves - Essa é uma forma obsoleta de perceber o Brasil. A base usada para medir a pobreza é o orçamento familiar. Os pesquisadores perguntam a um representante de cada domicílio qual é a renda média mensal. Como mais da metade dos trabalhadores está no mercado informal, é difícil que esse dado corresponda à realidade. Uma diarista na zona sul do Rio de Janeiro, por exemplo, cobra de R$ 60 a R$ 70. Se fizer quatro faxinas por semana, ganhará cerca de R$ 1.000 por mês. Nas pesquisas de governo, como o Censo, o Pnad e a Pesquisa de Orçamento Familiar, aparece como desempregada.
ÉPOCA - Como se pode medir a pobreza do Brasil? Neves - Da mesma maneira que as pesquisas de mercado fazem. Os institutos contratados acham que o indicador renda não é confiável. Eles preferem medir a penetração de serviços e de bens de consumo e analisar o estilo de vida. Quando o pesquisador bate em sua porta, não pergunta quanto você ganha. Ele pergunta coisas que você não tem problema em responder. Por exemplo: você tem carro? Televisão? DVD? Qual seu nível de escolaridade? Essas perguntas permitem ao setor privado saber qual é a disponibilidade do domicílio para comprar bens e produtos. Os institutos percebem que as contas não fecham. Nas favelas do Rio, 14% dos domicílios têm carro, 22% têm microondas e 48% têm lavadora de roupas.
ÉPOCA - Mas o endereço continua na favela. Neves - Uma coisa é pobreza, outra é baixa renda. No Rio, existe 1,8 milhão de domicílios. Desses, 300 mil estão em favelas. Percebemos que esses domicílios não representam mais a pobreza. Na nossa visão de classe média, olhamos para aquela alvenaria, o tijolo à mostra, e identificamos um sinal de pobreza. Não é assim. A primeira prioridade da pessoa de baixa renda é aumentar a metragem quadrada. Ela é de uma primeira geração que veio do Nordeste, passou a receber parentes, seu filho casou. A segunda prioridade é equipar a casa com eletrodomésticos.
ÉPOCA - A pobreza então é mais aparente que real? Neves - O que vemos na rua altera nossa percepção. A revista Time publicou que o Brasil tinha 15 milhões de meninos morando na rua. Em 1997, o sociólogo Betinho criou uma metodologia para contar os menores abandonados. Ele percebeu que era preciso separar menino que está na rua de menino que vive na rua. Também viu que eles ficam juntos e próximos a locais onde se abastecem de comida. Ele aplicou esse método no Rio e chegou à conclusão de que havia menos de mil meninos de rua. Outras prefeituras fizeram o mesmo e chegou-se à conclusão de que não havia mais de 20 mil crianças de rua no Brasil.
ÉPOCA - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse certa vez que o Brasil não é pobre, é desigual. Neves - Isso também é falso, por conta da metodologia utilizada pela ONU. Para começar, índices diferentes de anos diferentes são misturados. São avaliados dados de renda - que têm o problema da informação falsa - e dados de consumo. É juntar abacaxi com laranja. Além disso, o Brasil apresenta índices recentes, mas as informações de Serra Leoa, um dos poucos países que estão atrás de nós, são de 1989. Por último, as realidades dos países são completamente diferentes. Serra Leoa tem 61% das pessoas na zona rural. Como pode ser comparado ao Brasil?
Ana Branco/Ag. O Globo
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| 'Vemos o Brasil de forma obsoleta. Achamos que a pobreza, a desigualdade e a corrupção são problemas graves. Mas as questões mudaram'
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ÉPOCA - Qual é então o grande problema brasileiro? Neves - Assim como a inflação foi nosso dragão tempos atrás, a informalidade é nosso câncer que está entrando em metástase. A informalidade tem três eixos. O primeiro são os direitos de propriedade. Os barracos das favelas não podem ser comercializados, não podem ser usados para conseguir crédito. O segundo é o trabalho. Estima-se que entre 55% e 60% dos trabalhadores estão na informalidade. São pessoas que não contribuem, não pagam INSS. A carga tributária fica concentrada nos 40% restantes da população. O terceiro é a informalidade na cadeia produtiva. São empresas que estão fora da lei, seja porque os tributos são altos, seja porque a burocracia é complicada.
ÉPOCA - Por que o senhor diz que o Brasil não é um país corrupto? Neves - A corrupção aparece em todas as democracias. Sempre que há transparência aparece rabo preso. Isso é um bom sinal. No Brasil, temos rotatividade no poder. Temos também ONGs que monitoram as contas públicas. Há liberdade de imprensa. Na crise do mensalão vimos um trabalho exemplar dos veículos de notícia. A Lei de Licitação Pública é de 1992. Até então, obras faraônicas eram construídas por indicação de ministros. Há a Lei de Responsabilidade Fiscal. Temos portais eletrônicos do governo que permitem monitorar os empenhos do Tesouro Nacional.
ÉPOCA - E a classe média não está encolhendo? Neves - Encolhendo, não. Mudando. Essa classe média é herdeira da porção de Bélgica da Belíndia (mistura de Bélgica e Índia, expressão usada na década de 70 para explicar a desigualdade no Brasil). Ela antes tinha acesso ao sistema financeiro habitacional, a universidades públicas, à expansão de empresas estatais cheias de ofertas de trabalho e à indexação, que reajustava o dinheiro nos bancos. Na década de 90, essas facilidades acabaram e a classe média passou a ter mais gastos. É como se ela tivesse viajado sempre de executiva e agora tivesse de andar de econômica. Em compensação, existe uma população que era de baixa renda e ascendeu. É gente de bairros como Nova Iguaçu, no Rio, ou São Caetano, em São Paulo, que não estava no mapa tradicional da classe média.
ÉPOCA - O senhor não tem uma visão muito otimista do Brasil? Neves - Não. As perguntas mudaram. Sai a questão da pobreza, entra a da informalidade. Existe um estatismo exagerado. O Brasil tem 5.577 cidades. Mas os municípios viáveis estão em cerca de dez regiões metropolitanas, que somam no máximo 300, 400 cidades. O resto vive à base de fundos de participação municipal. É aí que temos de resgatar a semântica positiva da palavra elite. Precisamos ser mais produtivos.
| TÍTULO Pegando no Tranco
AUTOR Ricardo Neves
EDITORA Senac-Rio
PREÇO E PÁGINAS R$ 29 / 200 |
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