Preconceito línguístico: um ótimo texto sobre o que é escrever errado

Lobato entra de sola na nova polêmica com o MEC

Está divertido ver a patrulha do gramaticalmente correto (à qual pertenço, aliás, embora não entre na histeria atual) contra um livro distribuído pelo MEC para educação de jovens e adultos. Dizem até que o livro quer impor a fala das ruas e avacalhar a norma culta, quando ele faz o contrário, tentando dar o conhecimento da norma culta a quem conhece pouco mais que o linguajar popular, como se vê no capítulo polêmico, AQUI.

(Se você estava preso em uma mina no Chile, só agora foi salvo e não está entendendo do que falamos aqui no Sítio, o tema desse post é o que bem esclarece esse blogue AQUI).

Divertida a polêmica, porque pouco tempo atrás metiam o pau no MEC acusando o governo de querer censurar Monteiro Lobato. Só porque um conselho pediu cuidado com os trechos racistas do escritor, ao distribuir seus livros nas escolas. Agora querem censurar o livro “Por uma vida melhor” do MEC, que tem uns trechos que me fizeram lembrar Lobato, embora menos agressivos em suas propostas do que os escritos do velho escritor paulista.

Esclareço que não pertenço à turma que acha a defesa da norma culta um “preconceito linguístico”; já falei disso aqui no Sítio. Autores como Marcos Bagno (popularíssimos hoje em dia nas escolas de letras) apontam questões relevantes, como a necessidade de reconhecer o valor da fala popular, mas misturam isso num caldeirão ideológico para acusar a norma culta de ser apenas um instrumento de dominação, seleção e controle de classe. Para mim é evidente que não é isso, mas seria assunto para outro post. (Nada contra a ideologia também, , apenas contra certos usos dela).

Os trechos a seguir estão no livro”Prefácios e Entrevistas”, último tomo das obras completas do autor, editora Brasiliense, de 1949. Falei dele aqui no Sítio, antes .Vamos ao Lobato, pois, tão defendido pelos articulistas que hoje acham coisa de maluco da Al Qaeda dizer que não é errado dizer “pescar os peixe”:

“Essa língua descende da que os portugueses introduziram e que alijou a língua geral então existente nesses territórios: o tupu-guarani. Ficou a língua portuguesa sendo a língua geral do Brasil e até hoje o é. E por que o é? Porque aprendemos o português de duas maneiras, de ouvido e de leitura. Se o aprendessemos só de ouvido, como acontece com o jeca, a nossa “língua geral” estaria hoje tão distanciada da língua portuguesa que um português não a entenderia. O que conserva as línguas e impede que caminhem com velocidade excessiva pela tentadora estrada da evolução é a escrita.

Mas como o jeca nunca soube ler nem escrever, a evolução da língua portuguesa em sua boca se fez a galope…
… Por que nossos filólogos não extraem a gramática dessa língua do jeca? Que interessante seria! Quanta “mutação” vocabular, quanta variação de sintaxe, da prosodia, de tudo! Troca do “b” pelo “v”: cumbérsa, bérso, cuvérta… o “lh” substituído pelo “i”: “abêia”, “páia”, “máia” (malha)… O “ou” reduzido a “ô”: “fumô”, “botô”, “juntô”… Quantos aspectos!
Devíamos fazer a gramática da interessantíssima “língua do jeca” como os franceses fizeram a gramática da “língua de oc”; e devíamos enviar essa gramática às escolas, lado a lado com a gramática portuguesa… Que vantagem haveria nisso? Oh, grande _ podermos falar com os 15 milhões de jecas que há no território brasileiro.

A evolução da língua é curiosíssima e inteligentíssima, como todas as evoluções não atrapalhadas pelos breques dos artificialismos. A forma escrita das línguas é um artificalismo tremendamente embaraçador daevolução natural das línguas. Tão emperrado que, no inglês, a língua falada está pra cá e a escrita está pra lá. Mr Churchill escreve “enough” e diz “inâf”. O jeca teve a felicidade de não saber ler nem escrever, de não se preocupar com a Academia de Letras, de usar dos jornais unicamente o papel _ e graças a isso “evoluiu” a língua portuguesa só de ouvido e sempre de acordo com as injunções da “lei do menor esforço” e da “lei da melhor compreensão”. E como suprimiu besteiras inúteis! Os verbos, por exemplo. Nós, por causa da tirania da escrita, ainda estamos com tantas variações quanto o latim. Di8zemos: Eu tenho, Tu tens, Ele tem, Nós temos, Vós tendes, Eles têm. Há um grave defeito aqui. Se opronome já indica a pessoa do verbo, por que indicá-la de novo com a variação do verbo? Redundância, bobagem – perda de esforço. O jeca, porque vive na maior das penpurias, diz: Eu tenho, vancê tem, ele tem, nós tem, Vânces tem, eles tem. O inglês diz: I have, You have, He has, We have, You have, they have – e tanto o jeca como o inglês exprimem perfeitamente a “pessoa que tem”, sem estarem latinescamente variando o pobre verbo.

O jeca forma os seus plurais com a mesma inteligência e economia do inglês; diz, por exemplo, “as casa”, “os home”, “as muíé”, em vez de dizer redudantemente como o português, “as casas”, “os homens”, ” as mulheres”. O inglês diz “the men”, “the women”, “the houses” – a mesma coisa que o jeca, só que invertido. Se pondo apenas o artigo no plural a frase fica perfeitamente clara, para que botar no plural também o substantivo? pensa com muita razão o jeca e o inglês faz o mesmo raciocínio quando pluraliza o substantivo e não mexe no artigo.”

Outro trecho, mais adiante, no livro _ que tem prefácios a granel, muitos para livros obscuros dos amigos do escritor, como é o caso do Nho Bento que motivou essa peça de linguística amadora de Lobato:

“… o mesmo direito que tiveram os portugueses de corromper o latim e transformá-lo em línguaportuguesa temos nós, letrados, de corromper a língua portuguesa e transformá-la na língua brasileira; e tem o iletrado jeca de “evoluí-la” em outro rumo. mais cientificamenter, podemos dizer que a língua portuguesa bno Brasil está sofrendo duas variações: uma lenta, de gente que sabe ler e escrever e outra rápida, de gente da roça segregada do urbanismo , do livro, do jornal e do rádio – o abençoadop jeca que tem a sorte de não ler os jornais do governo nem da oposição e de não ouvir a “Hora do Brasil”.
Quem condena como coisa errada o modo de falar ou a língua do jeca revela-se curto de miolo. Os modos de variação duma língua são fenômenos naturais, e não há erro nos fenômenos naturais. Erro é coisa humana. Temos de estudar essas variações em vez de tolamente condená-las, pois condená-las equivale, por exemplo, a condenar os anéis de Saturno em nome dos planetas que não tem anéis.”

Tem mais argumentos, o livro, para mostrar que não é coisa nova nem partidária isso de defender a contribuição dos “erros” populares na formação da língua. Sei não, acho que, contra toda censura, deveriam distribuir esse texto do Lobato nas escolas.

2º cliche: “Vê lá esse negócio, tome cuidado” _ disse Oliveira, o canalha da redação, ao ver essa última imagem, retirada do livro (didático)  Emília no País da Gramática  _ “Isso me parece um caso típico de preconceito linguístico”.

Fonte!

E ainda procuro um texto da veja que vai diretamente contra esse…